Na procura do dinheiro de Judas (2)
Tentar reconstruir uma história acerca do dinheiro que tenha sido
objecto de troca na célebre traição de Judas, deveria, como trabalho de
investigação, obedecer e respeitar certas características sobre o seu conceito
e objectividade.
Em primeiro lugar exigirá o respeito pelo seu argumento histórico, e
obviamente, uma comparação sobre as suas fontes, como forma da salvaguardar o
melhor possível, tanto a sua fiabilidade, como a credibilidade, de que
precisamos para corroborar os factos.
Infelizmente, neste caso, essa análise comparativa não será de todo
possível, visto a sua génese, ter como único elemento de documentação, alguns
legados evangélicos dos Apóstolos S. Marcos, S. Lucas, S. João e S. Mateus.
Tudo o que realmente possuímos e sabemos sobre a traição de Judas, é-nos
relatado por esses escritos bíblicos, e por isso também a análise terá de ser
cautelosa e consciente, sobre a forma como o sentido místico em interpretações
ulteriores, poderá ter tido influência e criado limitações quanto à veracidade
dos factos.
Por tudo isto, nesta minha análise interpretativa deste “caso”
histórico, pela sua forma intuitiva, torna-se mais empírica que científica.
Terá sido no ano19 d. C. no reinado do imperador Tibério que Jesus
Cristo foi crucificado.
Nesse tempo, a Judeia era então uma província romana, e como tal nela
se aplicariam as principais decisões que vinham de Roma. Seria portanto natural
que a moeda principal que circulava fosse romana, ou provincial romana, embora
se tenha conhecimento de que a algumas outras moedas fosse permitida a sua
circulação, como o exemplo das moedas da dinastia de Heródes.
Na generalidade da literatura, argumenta-se que Judas terá recebido
pelo préstimo da sua traição, trinta moedas de prata. Neste ponto creio que
todos os historiadores convergem.
No meu ponto de vista, e para passar aos factos, pela característica
que conhecemos hoje das moedas que então terão circulado, excluo as moedas de
ouro como o”áureo”, o ”quinário” em prata, assim como os “sestércios”,
“dupôndios” e “asses”, geralmente cunhados em bronze.
Interessante salientar contudo, que no reinado de Tibério, só foram
cunhados dois tipos de “denário”(denário do latim denarius) em prata. Não
havendo conhecimento de que tenha sido cunhado nenhum outro tipo de moeda em
prata, durante o período deste imperador.
Tibério-Denário emitido no ano 14 d.C. em Lião (França) 3,78grs.)
O primeiro denário, cunhado no ano 14 d.C. em Lião, apresenta no
anverso o busto do imperador Tibério com a legenda “TI CAESAR DIVI AVG F
AVGVSTVS”. No reverso apresenta Lívia, (sua mãe) ou a Pax, sentada, com um ramo
de oliveira na mão esquerda, e um bastão na mão direita, com a legenda “PONTIF
MAXIM”. ( Há divergências acerca da figura
do reverso).
O segundo, terá sido cunhado no ano 16 d.C., e igualmente em Lião.
Também este apresenta no anverso, o busto de Tibério, com a mesma legenda do
primeiro. No reverso, apresenta o imperador conduzindo uma quadriga, com a
legenda “TR POT XVII IMP VII”. O seu peso era variável, e valeria o equivalente
a dez “asses”.
Temos então, que estas moedas circulariam em todo o império, aquando da
morte de Jesus Cristo. E, poderíamos concluir, que qualquer destas moedas
“denários”teria grandes probabilidades de ter servido de aliciamento no negócio
que propuseram a Judas. Mas, porque não inclui-los também misturados com outras
moedas, ou simplesmente um outro tipo de moeda em prata?
Alguns elementos substanciais transmitidos no legado dos quatro
apóstolos servem para esclarecer algumas dúvidas sobre estas hipóteses.
Hoje, no nosso quotidiano, e na nossa cultura, utilizamos o termo “dinheiro”.
Mas, na ligação que se lhe faz, quando se menciona este caso de Judas, a
palavra “dinheiro”, terá evoluído, e colado na sua identificação popular,
aparecendo o termo tanto na literatura, como no cinema, e em que usado desta
forma, se estará a deformar uma realidade histórica.
Tibério-Denário emitido no ano 16 d.C. em Lião - 3,94grs.)
Nas sagradas escrituras, no que pesquisei, não vi mencionada a palavra
“dinheiro”. Uma bíblia editada em 1859, que folheei numa biblioteca, foi-me
bastante útil.
Dos quatro evangelistas que se referem a este caso, dois deles, S
.Marcos e S. Lucas, afirmam que Judas vendeu Jesus, mas sem dar pormenores
sobre o montante do negócio.
No evangelho de S. João, faz referência a trinta moedas de prata.
É contudo, S. Mateus que na sua narração, nos poderá esclarecer mais
sobre este assunto.
Acusando o seu condiscípulo Judas, por este ter vendido o Mestre pela
soma de trinta “siclos”de prata. Teria ele sido colector de impostos para falar
desta maneira tão formal, no que se refere a “siclos”de prata?
Não encontrei nada, que me tenha dado indicação de que alguma vez se
tenha usado a palavra “siclo” em referência
ao assunto que tratamos.
O termo “siclo” é conhecido como uma medida antiga, que equivalia a 6
gramas de prata.
Mas na narrativa de S.Mateus, também poderia ser a moeda de prata
utilizada por fenícios e hebreus, que em hebraico era designado por “shekel”.
É pois muito provável que Judas tenha traído, e sido pago com 30
(trinta) “shekels” de prata.
Julgo que naquela época, o único tipo de moeda de 1 (um) shekel em
prata que circulou na região tenha sido o “shekel” dito de Jerusalém (como nas
moedas de Tiro).
Era uma moeda que pesava mais ou menos 14 a 15 gramas, e circulou em
grande quantidade, tendo sido feitas várias cunhagens deste tipo de moeda. Uma
delas foi precisamente no ano 33 d.C. O ano da suposta morte de Jesus Cristo?
Aqui também existem muitas divergências, embora as datas que aparecem com mais
frequência sejam entre os anos 30 e 33 d.C.
O “shekel de Jerusalém” em baixo retratado, apresenta no anverso o
rosto do antigo deus Melkart, também conhecido por Baal, virado à direita, e no
reverso apresenta uma águia virada à esquerda.
Atendendo a que o preço de um escravo, naquela época, seria de 180 g de
prata, poderemos calcular que Judas no negócio efectuado, teria vendido o
Mestre por cerca de 4,250 Kg de prata.
Creio pois, ser o “shekel de Jerusalém” a mais provável moeda que
procuramos identificar nesta história, pese embora o risco de decepcionar
alguns coleccionadores que já possuam uma, ou as duas variantes do “denário” de
Tibério, denominados por “dinheiro de Judas”.
Contudo, estes dois “denários” continuam a ser extremamente
interessantes, quem sabe se não terão sido utilizados pelos soldados romanos
que guardavam o sepulcro, enquanto jogavam aos dados sobre a túnica de Jesus
Cristo, o que lhes confere sempre uma grande história.
O que lamentamos, é que ao longo dos tempos o conceito que nos parece mais
plausível para esta história, por motivos menores, se tenha adulterado, e
sobreposto ao texto original.
Dizer que Judas entregou Jesus Cristo por 30 dinheiros, sempre é mais
cómodo que dizer, Judas entregou Jesus Cristo por 30 shekels.
Afirmar quais as moedas que pagaram a traição de Judas, é tarefa
difícil, senão impossível.
Denários da época de Augusto? Dracmas, siclos, ou shekels?
Pouco provável é que tenha recebido denários de Tibério. Isto porque
mesmo as cunhagens em grande quantidade, demoravam muito tempo a entrar em
circulação, sobretudo nas províncias longínquas do império, como a Judeia onde
circulavam muitos tipos de moeda.
Esta questão, levantou-se na Idade Média, e foi proposto ou entendido
pelos dirigentes eclesiásticos da época, que a moeda representativa desse facto
histórico deveria ser uma moeda que representava Cristo com uma coroa de
espinhos. De facto existe um “dracma”de Rodes que representa o deus Hélios ( na
mitologia associado ao Sol), com a cabeça adornada com raios, parecendo Jesus
Cristo com a coroa de espinhos. Essas moedas, foram na época alvo de uma grande
devoção.
Porque razão Judas traíu Cristo?
Durante séculos, este personagem tem fascinado teólogos, artistas,
intelectuais, que se interrogam motivo que o levou a cometer este crime, e
avançam com algumas hipóteses.
Judas Iscariote (ou Iscariot ou
Iscarioth) foi segundo a tradição cristã, um dos doze apóstolos de Jesus de
Nazaré.
Segundo os evangelhos canônicos, Judas facilitou a prisão de Jesus por
internédio dos sumos sacerdotes de
Jerusalém, que em seguida o entregaram a Ponce Pilatos.
A figura “evanescente” deste personagem é motivo de muita controvérsia na
historiografia cristã, a sua autenticidade permanece muito frágil e levanta
dúvidas sobre uma parcela significativa das críticas.
Bandido ou revolucionário?
O cristianismo baseado no evangelho de João, fez de Judas um vulgar
criminoso atraído pelo dinheiro fácil, que entregou o mestre por algumas
moedas.
Mas, esta hipótese é muito contestada:
a quantia oferecida a Judas pelos
romanos (trinta denários ?) é
insignificante, porque Judas enquanto
tesoureiro dos apóstolos tinha oportunidade de se apropriar importâncias mais elevadas.
“O seu nome Iscariotes, também faz pensar que era, ou foi membro dos
sicários, judeus “zelotes” que defendiam a rebelião armada contra os romanos.
Finalmente decepcionado por Jesus um Messias muito pacifista, terá motivado
Judas a cometer a sua traição.
Todavia, a influência dos sicários parece ser posterior à morte de Jesus.
No entanto, a pista de um conflito, uma
incompatibilidade ideológica entre um dirigente idealista e Judas,
continua a ser possível.
(Sicário :(em latin sicarius) - “homem da
adaga”, é um termo aplicado nas décadas imediatamente precedentes à destruição
de Jerusalém no ano 70, para definir um grupo extremista separatista de zelotas
judeus que tentavam expulsar os romanos e seus simpatizantes da Judeia.
Os sicários utilizavam a “sica”, termo latino para
um tipo de adaga pequena que escondiam nos seus mantos).
Aquando de reuniões públicas, eles sacavam estas
adagas para atacar os romanos ou judeus simpatizantes, se misturando depois à
multidão para se escaparem.
Os sicários foram um dos primeiros grupos organizados
cujo objetivo era a realização de assassinatos, muito antes dos assassinos do Oriente Médo e dos ninjas japoneses.
Judas, um traidor necessário?
Antes do reaparecimento do Evangelho de Judas, a
teologia já tinha avançado com a possibilidade de um “traidor messiânico”,
sacrificado para que se realizasse o destino de Jesus.
Efetivamente, sem Judas não teria havido
cruxificação nem ressurreição.
A questão da punição divina reservada a Judas e,
uma possível indulgência tem sido um assunto de muitas divergências nos debates
teológicos.
O olhar, (ou
por outras palavras direi o julgamento
do cristão), sobre este personagem
amaldiçoado, passou a ser mais indulgente a partir século XIX.
O Novo Testamento, dá-nos duas versões diferentes sobre a morte de Judas.
No Evangelho segundo São Mateus, Judas morre logo após a condenação de
Jesus.
Este cheio de remorso foi ao encontro dos sacerdotes e anciãos e
disse-lhes.
Pequei traindo um inocente. Em
seguida retirou-se , atirou com as moedas para o templo e enforcou-se. (Mateus
27,5 TOB).
Os atos dos Apóstolos (1,18) dão-os outra versão.
“Depois de adquirir um campo com o salário do seu crime, Judas caíu ,
quebrou pelo meio e, todas as suas entranhas se espalharam à sua volta.
Há dois mil anos, Judas Iscariotes entrou para a história por ter entregado
Cristo a troco de algum dinheiro.
Todavia, o enigna referente à quantia e
identificação das moedas que
recebeu em troco da sua traição, ainda não foi desvendado.
Manuel Félix Geada Sousa
Bibliografia
André Paul ; La Bible avant
la Bible : La grande révélation des manuscrists de la Mer Morte, éd. Cerf,
Paris, 2 005.
James M. Robinson; Les secrets de
Judas, Histoire de l’apôtre incompris et de son evangile- éd. Michel Lafon,
2 000.
Le Douzième Apôtre; Fac-
Reflexion n°22, Fevereiro 1993, PP 14-26 (Le cas de Judas et la doctrine de la
reprobation)
Centre Numismatique du Palais-V. S.
O. Paris 28-06-2002.
Notas e referências
Mireille Hadas
Lebel, Jerusalém contre Rome, éd. Cerf, Paris 1 990, p, 416-417.
Simon Claude Mimouni, La figure de Judas et les origines du
christianisme : entre tradition et histoire, publié par Maddalena Scopello, éd. Brill, Danvers, 2 008.
Simon Claude Mimouni, Le judaisme
ancien du VI a.C., au III siècle d.C., éd. PUF,
2 012, p, 469.
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